31 de maio de 2015

Eloísa Mafalda Bebe Leite Semidesnatado

Existem algumas pessoas que parecem não entender o conceito de fones de ouvido.

O fone de ouvido é, antes de tudo, algo que separa o usuário dos ruídos do planeta, mas existem algumas pessoas que parecem acreditar que, para se comunicar com alguém que estiver com fones de ouvido, basta falar normalmente ao lado dela. Talvez na mente delas a pessoa nem mesmo está com fones de ouvido, ela apenas tem uma má formação na orelha que resultou em um plugue e um cabo ligando o ouvido ao bolso da calça.

Esse é o caso da mulher que veio falar comigo no mercado ontem. Eu estava comprando leite e ela ao meu lado – eu já havia prestado atenção nela desde que me aproximei, já que ela era a cara da Eloísa Mafalda. Mas estava quieto, procurando o leite que compro sempre e ouvindo blues no iPod. Mas, claro, bastou eu olhar para o lado para ver que ela estava segurando uma caixa de leite, apontando alguma coisa na embalagem e falando comigo.

Quer dizer, acredito que ela estava falando comigo. Afinal, ela estava olhando para mim e seus lábios estavam se movendo, como se eu estivesse assistindo a uma TV sem som. E, mesmo sabendo que o que eu estava ouvindo seria muito mais interessante que qualquer coisa que a Eloísa Mafalda pudesse falar sobre as propriedades do leite, tirei o fone de ouvido para ouvir o que ela estava falando. Babaquice, seu nome é Rob Gordon.

– A senhora falou comigo?

Ela olhou para mim e para o leite e para mim de novo. E apontou diretamente a palavra SEMIDESNATADO na embalagem, antes de perguntar:

– Murmúriofalandobaixodeumjeitoqueéimpossívelouvir?

– Oi?

– Voumurmurardeformainaudívelmais. Umavezmasvêseescutaporquenãogosto. Demerepetir?

Certo. A Eloísa Mafalda do mercado não falava português. Na verdade, ela parecia se comunicar por meio de alguma língua morta e esquecida, que contava com duas regras gramaticais: se expresse sem abrir a boca e nunca fale num tom acima de 2 decibéis. Assim, eu decidi me concentrar no seu dedo e tentei continuar a conversa da melhor forma que consegui:

– Sim, esse é semidesnatado.

Eu pensei em dizer a ela que isso não me torna um gênio da indústria leiteira, já que eu estava apenas lendo a palavra em voz alta, mas resolvi guardar isso para mim. Além disso, ela parecia ter finalmente conseguido montar uma frase em português.

– Esse aqui tem tudo?

– Como assim?

– Tudo. Esse aqui tem tudo?

“Olhe, minha senhora, tudo é um conceito complexo demais. O que é tudo para a senhora pode não ser tudo para mim. O tudo depende muito da sua bagagem pessoal, e, acredito, das suas aspirações e ambições. Para discutirmos se ele tem tudo, preciso saber um pouco mais sobre seus sonhos. O que tem mais valor na vida da senhora? Nata ou espiritualismo? Cálcio ou satisfação profissional? Um pouquinho de gordura ou independência financeira?”

Mandei meu cérebro calar a boca e tentei me concentrar na mulher. A pergunta dela era fácil de ser compreendida. “Esse aqui tem tudo?”. Mas nem tudo o que é fácil de ser compreendido faz sentido, então eu não sabia como começar.

Foi quando tomei uma decisão que mudou minha vida. Da mesma forma que as pessoas que conversam comigo na rua não prestam atenção no que eu falo e falam a primeira coisa que vem na cabeça delas, eu resolvi que iria fazer o mesmo. Assim, eu ignorei o que ela havia dito sobre o tudo e repeti:

– Esse é semidesnatado.

Foi libertador. Finalmente entendi a satisfação de conversar com uma pessoa sem tentar manter um raciocínio lógico. Se a Eloísa Mafalda quisesse saber mais sobre o leite, teria que se esforçar. Assim, ela voltou a falar, também em português.

– Mas esse aqui não tem tudo.

– Não. Esse é semidesnatado.

Ela continuou olhando a caixa do leite em suas mãos, provavelmente procurando a frase “este tem tudo” ou “este não tem tudo”. Então, peguei uma caixa de leite escrito Integral e mostrei a ela.

– Este aqui tem tudo.

Aparentemente, o leite integral estava para a Eloísa Mafalda como a água benta para um vampiro. Ela me olhou de um jeito horrorizado e gritou comigo:

– NÃO! EU NÃO GOSTO DESSE!

Todos no mercado olharam na minha direção. Eu olhei de volta para eles, com o meu melhor ar de “olha, eu só queria comprar um litro de leite e ir embora”. Acho que consegui, pois as pessoas voltaram a fazer suas coisas e nos deixaram em paz. A Eloísa, porém, nem percebeu isso. Ela estava mais uma vez olhando para a caixa de leite original, aquela que ela tinha em mãos.

– Este aqui tem tudo?

– Não.

– Este aqui tem tudo.

Desta vez, não foi uma pergunta.

– A senhora precisa de mim ainda? Porque aparentemente a senhora está promovendo um debate consigo mesma, então eu vou escolher meu leite ali, e quando você e você mesma chegarem a um consenso, é só me avisar.

– Eu não quero esse.

– Olhe, eu não quero muita coisa na minha vida, mas às vezes somos obrigados a aceitar. Tipo leite. Às vezes, temos que comprar um leite semidesnatado mesmo porque...

– Eu quero um sem tudo.

– Sem tudo é seu jeito de dizer “nada”?

– Sem tudo.

Olhei para a prateleira. Aparentemente, ela queria uma caixa de leite vazia, mas isso eu não encontraria ali. Então, fui pelo caminho mais lógico e apanhei uma caixa de leite desnatado.

– Este aqui não tem nada.

– Nada?

– Sim. Esse aqui é sem tudo. É desnatado. Não tem nem o “semi”. Esse é sem nada mesmo.

– ESSE É MUITO RUIM!

Novamente, o mercado inteiro olhou na nossa direção. Eu já comecei a esperar que um segurança aparecesse e eu tivesse que explicar que eu só queria comprar um litro de leite e voltar para casa sem conversar com ninguém, mas aproveitando que você está aqui essa senhora aqui ao meu lado parece estar precisando de ajuda, será que você pode falar com ela enquanto eu vou embora e nunca volto mais aqui.

Olhei de volta para a prateleira tentando resolver aqui de uma vez por todas. Procurei uma nova alternativa. Em vão. Os leites eram de várias marcas, mas todos giravam em torno dos conceitos “desnatado”, “semidesnatado” “e “integral”. Assim, resolvi explicar para a Eloísa que ela teria que lidar com as cartas que tinha na mão, como qualquer outra pessoa. E, para ganhar tempo, decidi que seria melhor contar isso dentro dos termos dela.

– Olhe, só tem três leites. Esse aqui que tem tudo, esse aqui que é sem tudo e esse que está na sua mão.

– Mas esse aqui tem tudo?

– Não. Esse é semi- tudo. Aquele outro tem tudo. E esse aqui é sem tudo.

– Esse aqui tem tudo.

Novamente, não foi uma pergunta.

– É impressão minha ou a senhora está presa dentro de um lapso temporal?

– Esse é sem tudo?

– A senhora está numa espécie de limbo, vivendo os mesmos cinco segundos em looping.  Sinceramente, acho que a senhora nem mesmo pode me ver.

Ela continuou apontando a palavra semidesnatado. Às vezes erguia os olhos e procurava por um quarto tipo de leite, que provavelmente não existia em nosso universo.

– Esse aqui tem tudo.

Eu apanhei o meu leite (é o “sem tudo”) e comecei a me afastar.

– Eu vou indo. Qualquer coisa que a senhora precisar, tem um funcionário ali.

– Leite.

– Isso. Leite aqui. Funcionário ali. Eu lá longe. Boa sorte pra senhora.

– Tchau.

Coloquei meu fone de ouvido e fui embora. E voltei para casa cada vez mais convencido que demônios existem e estão em todo o lugar, passeando pelo planeta com a missão de mostrar aos incautos que o inferno existe e é aqui mesmo,

Às vezes, o melhor a fazer é ignorá-los. Dica: especialmente quando eles se parecem com a Eloísa Mafalda.

2 comentários:

Juba disse...

Eu compro um quarto leite, se chama "baixa lactose". E não tem opção de tudo, semi-tudo e nada, nem Heloísa Mafalda... Acho que ela queria o quinto tipo.

Chico disse...

Na dúvida, sempre que alguém se aproximar, mantenha os fones de ouvido e finja que nem percebeu a pessoa ali.
Seja tão maluco quanto o maluco, e você vai se livrar dele mais rápido.

PS.: Também compro do "sum tudo".
hahahahaha