26 de setembro de 2014

Colheita Maldita

De uns tempos para cá, começaram a surgir algumas armadilhas espalhadas pela cidade aqui em São Paulo. No começo, confesso que não dei atenção. Mas, com o tempo, a situação começou a mudar. Eu passava por uma delas e, ao sentir o cheiro, meu impulso era parar e falar com a pessoa. Mas resistia bravamente e apertava o passo.

Contudo, a coisa foi piorando a cada dia. Eu sabia que um dia seria inevitável. Um dia, o maldito cheiro iria me vencer e eu iria cair na armadilha.

Dito e feito.

Dia desses, eu estava saindo do metrô com uma fome equivalente a de um refugiado de guerra civil que acordou mais tarde logo no dia que o caminhão da Cruz Vermelha passou no bairro. Eu não havia almoçado e eram quase dez da noite.

Comecei a descer a Lins de Vasconcelos, sabendo que pelo menos duas armadilhas estariam em meu caminho. Meus planos eram ignorar a primeira e tentar juntar forças para vencer a segunda. Se houvesse uma terceira, eu não teria o menor puder em atravessar a rua para me esconder. Com coragem e determinação, eu conseguiria voltar ileso para casa. Com coragem e determinação, eu conseguiria escapar de todos os desafios. Com coragem e determinação, nada me atingiria.

Mas logo na primeira armadilha nós dois (eu e meu estômago) sentimos o cheiro. Com coragem e determinação tentei resistir, mas meu estômago começou a rosnar e, ameaçando morder minha coragem e minha determinação, colocou as duas para correr.

Quando eu percebi, já estava com a barriga encostada no carrinho, salivando e com a carteira na mão.

– Cara, me dá um milho.

O vendedor olhou para mim de forma casual.

– Prato grande ou pequeno?

Meu estômago começou a gritar “Tem gigante? Eu quero dois gigantes!”, mas eu fui mais rápido e respondi que “grande”. Em dois minutos, o sujeito pescou um milho da panela, espetou num garfo e fez intervenções cirúrgicas limpando a espiga e jogando os grãos no pratinho com uma destreza que fariam Jet Li e sua espada morrer de inveja.

Com o prato pronto, ele perguntou:

– Manteiga?

– Como assim?

– Você quer manteiga no milho?

Eu havia entendido a pergunta, apenas achei completamente desnecessária.

Antes de continuarmos, quero falar sobre meu irmão e pimentões recheados. Quando meu irmão era criança, ele achava que os pimentões já nasciam recheados. Na mente dele, os pimentões já vinham com carne moída e ovo cozido, porque era assim que minha mãe fazia, e era assim que ele comia. Talvez tenha sido um choque para o meu irmão descobrir que quem colocava a carne e os ovos ali era minha mãe, mas hoje ele sabe como são os pimentões.

Eu, por outro lado, acredito que uma espiga de milho já nasce coberta de manteiga lá no milharal. Isso porque o conceito de milho envolve manteiga. Eu não consigo sequer visualizar milho sem manteiga. Milho sem manteiga não é milho, é outra coisa.

Assim como meu irmão e seus pimentões recheados da infância, acredito que se eu parar de ler este texto agora, for a um milharal e olhar uma espiga, verei que ela está brilhando de tanta manteiga que possui em seus grãos.

Sim, eu sei que meu irmão acreditava que os pimentões vinham recheados quando ele tinha seis anos e eu tenho 39. Também tenho plena consciência de que isso enfraquece meu argumento. Mas vivi muito bem até hoje achando que milho já vem com manteiga e vou continuar assim porque saber que existe um alimento que já nasce lambuzado de manteiga me faz acreditar mais no mundo.

– E aí? Manteiga ou não?

– Desculpe, estava pensando no meu irmão e num negócio que vou escrever no blog.

– Como?

– Nada. Com manteiga. Muita manteiga. Toda manteiga que você tiver aí, se não for incômodo. E muito sal.

Instantes depois, eu estava descendo a Lins de Vasconcelos com um pequeno prato de isopor contendo centenas de milhares de pequenas coisas douradas que vocês chamariam de grãos de milho, mas que, no meu universo, se chamam pepitas de sabor.

A cada dez metros, uma colherada – sim, eu ganhei uma colherzinha de plástico – de milho. Aliás, não de qualquer milho, mas de milho brilhando, com manteiga derretida. Na primeira colherada, eu gemi de prazer. Na segunda colherada, eu sorri. Na terceira, eu já sentia a manteiga se espalhando pelas minhas veias.

Na sexta ou sétima colherada, eu já estava determinando a não ir para casa. Iria com meu prato e minha colherzinha branca procurar um restaurante gourmet para ficar na calçada fazendo dancinhas, gestos obscenos e gritando “FUPA!” (que é o equivalente a “chupa!” quando você está com a boca cheia de milho com manteiga).

Eu disse que a cada dez metros era uma colherada, né? Isso, claro, arredondando. Mas, para efeitos matemáticos, vamos assim mesmo: uma colherada a cada dez metros. Como os quarteirões da Lins tem, sei lá, uns cem metros, estamos falando de dez colheradas por quarteirão.

No sexto quarteirão, então, eu deveria já ter comido uma sessenta colheradas. E ainda não havia visto o menor indício do final do prato aparecer. Tudo o que eu via era milho. Dei uma mexida no milho com a colher, levantei o prato e olhei para a parte de baixo dele, mas tudo parecia normal. Mas algo eu estava fazendo de errado, porque eu já havia comido o equivalente a umas oito espigas e, aparentemente, quanto mais eu comia, mais milho tinha no pratinho. E mais eu comia.

No sétimo quarteirão, eu já estava passando mal. Bonecos palitos feitos de manteiga haviam nascido dentro do meu corpo e corriam para todos os lados, fechando veias e entupindo artérias. Grãos de milho saíam pelos meus ouvidos. E nada de aparecer o fundo do prato. E nada de eu parar de comer.

No oitavo quarteirão, eu comecei a abordar as pessoas na rua, pedindo um pouco de ajuda. Todas se afastavam achando que eu ia pedir uma esmola, e eu gritava que “é justamente o contrário, eu preciso de ajuda para terminar este prato de milho! Por favor, volte aqui!”, mas ninguém me atendeu.

No nono quarteirão, minha pele estava laranja. Um cocar com espigas de milho apareceu na minha cabeça. Eu estava me transformando em Centeotl, o deus do milho asteca, e passaria a eternidade ali, vestido como um travesti pré-colombiano no meio da Lins de Vasconcelos, exigindo cultos e sacrifícios em meu nome (e secretamente esperando algum camponês ter o bom senso de me trazer uma Coca Zero como oferenda). Enquanto isso, eu continuei comendo.

No décimo quarteirão eu estava deitado na calçada, gemendo, ao lado de um prato cheio de milho. Com a voz embargada de milho e manteiga, implorava “me mate, por favor!” para as pessoas que passavam por mim.

No último quarteirão antes de casa, fui obrigado a abandonar o milho. Larguei aquela merda num lixinho, e, sabendo que havia me libertado de alguma edição agrícola, entrei no mercado e comprei uma Coca de dois litros. Comecei a beber na fila do caixa e, quando paguei, já havia bebido metade da garrafa.

Aquela noite, não jantei. Fui direto para a cama e sonhei com as crianças do Colheita Maldita. Eu tentava fugir delas correndo em um milharal infinito, mas elas eram muitas e conseguiram me alcançar. De repente surgiu o Menino-Pastor, jogando pás de manteiga dentro da minha boca e ordenando que me crucificassem no meio do milharal.

Você quer mais manteiga?

Acordei gritando e gritei ainda mais quando vi uma cabeça de espiga de milho morta na minha cama.

Fui até a cozinha, tomei mais 6,5 litros de Coca – ignorando a espiga bebê que engatinhava pelo teto – voltei para o quarto, guardei a espiga no guarda-roupa e dormi novamente. Desta vez, não tive mais sonhos.

Mas, na manhã seguinte, ao despertar de sonhos inquietantes, Rob Gordon deu por si na cama transformado numa gigantesca espiga.

11 comentários:

Elise disse...

Essas barraquinhas deviam existir quando eu usava aparelho e não podia dar uma bela duma mordida numa espiga de milho, hunf.

Espero que você consiga sair ileso da sua transformação em espiga - pelo que me lembro da outra história, acontecia uma coisa meio desagradável com o personagem, então cuide bem das suas costas!

[e minha mente doentia só conseguia lembrar de O último tango em Paris quando esse menino começou a jogar a manteiga em você hahahahahah]

Varotto disse...

O show do Milhão.

Varotto disse...

(Com manteigão)

Juba disse...

Está provado que milho estimula a associação de referências cinematográficas e literárias.

Fernanda disse...

Estou encantada com a venda de muito num pratinho, pra você comer de colher... Aqui so temos ainda a opção de milho envolto em folhas e um guardanapo pro final, sendo que nenhum deles é infinito! Uau!!!

E você sabe que os pesadelos foram porque vive jogou fora a fonte do milho inesgotável, né?! Isso foi pecado!

Sabrina Souza disse...

Amo o teu blog cara,e podem dizer:pras baratas Kafka não é ninguém...mas pro milho vc deve se um Deus kkkkkkkkkkkkk Ps:na briga ente uma barata e vc(milhão)apostava dez ''pila'' em ti ,sim eu imaginei a briga,o cara não sabia dividir...imagina dividir uma ''historia'' peculiarmente parecida com a tua...

Juba disse...

Rob, não sei se ainda tem, mas no terminal da Vila Mariana tinha um favo holandês que me fazia tomar o caminho mais longo para a Zona Oeste (2 ônibus e o metrô, em vez de apenas um ônibus, imagine como era bom!), só pra comprar. Tinha vinho na calda de chocolate.

Unknown disse...

Oi, vim estragar a brincadeira!

Uma conhecida viu, certa vez, o cara de um desses carrinhos de milho afiando sua faca mágica do Jet Li, que ele usa pra debulhar o milho, na guia. Sim, afiando na pedra da calçada!

Nunca mais comi milho na rua.

Abraço!

Dudu disse...

Como assim? No Rio vc come a espiga direto! Quero no pratinho!!!

K.P. disse...

Coisas de São Paulo que eu sinto falta: milho no pratinho. Mesmo que a faca seja afiada na guia. Não me importo. Nunca, jamais. <3

Ana Savini disse...

Faca afiada na guia é nível areia na raspadinha da praia feita com gelo de procedência duvidosa. Você sabe dessas coisas mas ignora. :P