26 de fevereiro de 2013

Os Espíritos Que Varrem


Foi agora de manhã.

Estava no computador quando a campainha tocou. Fui até a janela e não vi ninguém na frente de casa. Resmunguei alguma coisa e voltei para o PC. Alguns minutos depois, a campainha tocou novamente. Visando ganhar tempo, já comecei a resmungar antes mesmo de olhar pela janela – e todos os meus palavrões se justificaram quando espiei pela janela e não vi ninguém.

Mas, para tirar qualquer dúvida, saí de casa e fui até o portão, apenas para descobrir que dezenas de funcionários da prefeitura estavam limpando a rua. Para qualquer lado que eu olhasse, pessoas carpiam os matos das calçadas e das guias, enquanto outros varriam as folhas cortadas.

“Talvez tenha sido um deles que tocou a campainha aqui “, pensei e fiquei um pouco no portão esperando um deles falar comigo. Mas eles continuaram me ignorando, fazendo seu trabalho com se eu não estivesse ali. Olhei para a direita e vi uns dez sujeitos mexendo nos matos e varrendo a rua. Olhei para a esquerda e...

Dei de cara com um velho que aparentava ter nascido em outra era da História – eu chutaria na Idade Moderna, mas se alguém me falasse que era na Idade Média, eu acreditaria facilmente. Ele estava usando as mesmas roupas dos outros. Mas o ponto é que ele não estava ali dois segundos antes.

Fiquei sem reação. O Velho apenas olhou para mim e disse:

- Você tem um dinheiro para a gente tomar um guaraná à tarde?

Olhei ao redor e os colegas do velho continuavam me ignorando. Falei que sim e pedi para ele esperar um pouco. Entrei em casa, peguei cinco reais, voltei para a calçada e entreguei ao Velho. Ele guardou o dinheiro no bolso e agradeceu. Olhei para um lado, e reparei que os sujeitos continuavam cortando os matos. Olhei para o outro e – como eu temia – nada de Velho. Apenas mais sujeitos varrendo as ruas. O Velho não estava em lugar algum.

Voltei para dentro de casa.

Uma meia hora depois, descobri que quem não tinha mais refrigerante em casa era eu. Assim, peguei uma nota de dez reais e fui até a padaria. Quando estava no meio do caminho, próximo a um ponto de táxi, subitamente me vi cercado pelas pessoas uniformizadas carpindo mato e varrendo a rua. Eram mais de vinte. E não estavam ali antes. Olhei ao redor e parecia que ninguém mais havia reparado neles. Os motoristas de táxi estavam alheios à presença deles ali.

E, quando olhei para frente novamente, dei de cara com um dos sujeitos, parado, olhando para mim. Não era o Velho. Era bem mais jovem que ele – talvez mais novo que eu, apesar do rosto castigado pelo cansaço. Seu olhar era vazio. Ele balbuciou:

- Você tem um dinheiro para a gente tomar um guaraná à tarde?

E eu expliquei que “um dos seus colegas tocou em casa alguns minutos atrás, me pedindo isso e eu dei o dinheiro”. Ele agradeceu – e até agora eu não sabia se ele estava olhando para mim ou através de mim, já que seus olhos pareciam fitar o infinito. Desviei dele e continuei andando – e não, eu não tentei atravessar o corpo dele com o meu pois, caso eu fosse bem sucedido, iria começar a gritar feito uma menina de nove anos no meio da rua – e fui até a padaria.

Entrei, peguei uma garrafa de Coca, paguei e saí. Não demorei mais que dois minutos na padaria, e um minuto depois disso, estava novamente na metade do caminho.

E não havia ninguém. As mais de vinte pessoas vestidas uniformizadas haviam sumido. Olhei ao redor, e nem sinal delas. Se tivessem subido o quarteirão, eu teria cruzado com elas ao sair da padaria. Se tivessem descido, elas ainda estariam no meu campo de visão. Mas não estavam ali. E os taxistas continuavam ali, sem demonstrar qualquer sinal de que viram as pessoas varrendo a rua.

Voltei para casa, respirei fundo e acendi um cigarro. Pensei em pesquisar se existe a história de um grupo de garis que teria morrido de insolação décadas atrás aqui na vizinhança. Talvez sejam condenados a passar a eternidade varrendo as ruas e arrancando matos, revivendo para sempre o momento de sua morte, causada por sede, calor e péssimas condições de trabalho.

Mas mudei de ideia. Em alguns casos, a ignorância talvez seja uma benção. Mas, por via das dúvidas, hoje de madrugada vou colocar uma garrafa de guaraná e uma vela lá na esquina. Mal não vai fazer.

Afinal, yo no creo en garis. Pero que los hay, los hay. 

4 comentários:

@isadoramoraes disse...

Que estranho/legal/assustador/interessante/tudo ao mesmo tempo.
E o guaraná na esquina realmente é uma boa ideia

George Marques disse...

Tenho quase certeza que é algum scam pra arrecadar dinheiro executado por ninjas.

Varotto disse...

Cara, essa história seria uma grande candidata a ser filmada para Amazing Stories, aquela série produzida pelo Spielberg nos anos 80.

Varotto disse...

Ou para o Twilight Zone.